quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Faço greve

Para não dizerem que são as palavras de um comunista, de um bloquista ou mesmo de um socialista, recordo Paulo Morais, que foi Vereador do PSD no Porto e que escreveu no Jornal de Notícias, no dia 24 de Novembro de 2010: HOJE FAÇO GREVE. Portanto há 1 ano atrás. E não é que 1 ano depois e com um governo novo o artigo de opinião é perfeitamente actual.

Hoje faço greve. Porque me angustia o rumo que o país leva, a deterioração crescente do nível de vida dos portugueses. O crescimento do desemprego, a manutenção de salários de miséria, a par do aumento de impostos, transformaram a vida dos mais necessitados num inferno. Há frigoríficos vazios em muitas casas, rendas por pagar, famílias insolventes. Centenas de milhar estão numa agonia, reféns dos malfadados créditos ao consumo a taxas de 30 por cento. Aumentam os sem-abrigo nas ruas das áreas metropolitanas, cresce o consumo e tráfico de droga. Com mais assaltos e até mais suicídios, o ambiente social é explosivo. Só por isto faria greve.

Mas também porque estou revoltado com os partidos políticos que capturaram o regime e transformaram a actividade política numa megacentral de negócios. A corrupção instalou-se, o tráfico de influências é a regra, com uma promiscuidade permanente entre os maiores escritórios de advogados e os gabinetes governamentais, entre o Parlamento e os grandes grupos económicos. Neste panorama pantanoso, a maioria dos políticos tem hoje apenas três objectivos: manter os mandatos, bem como os privilégios que estes lhes conferem, obter negócios para os seus financiadores e apoiantes à custa dos recursos públicos e, por último, distribuir empregos e "tachos" pelos seus apaniguados. A política é hoje a "porca em que quase todos mamam" de que falava Bordalo Pinheiro.

Finalmente, faço greve porque as medidas recentemente anunciadas são contrárias às que o país precisa. Sem qualquer estratégia coerente, o intuito do governo português parece ser apenas aumentar a dívida pública, acautelando rentabilidades obscenas a quem a financia; a par da teimosia nas parcerias público-privadas que garantem aos privados todos os lucros e socializam todos os prejuízos. Para pagar estes desmandos, reduzem-se salários e aumentam-se impostos uma vez mais. Assim se irá liquidar a pouca actividade económica que heroicamente subsiste. Por isso, também pelo futuro da nossa economia, adiro à greve.

E faço greve, enfim, porque não posso fazer a revolução.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A praxe e a crise cultural













in Algarve Mais, Novembro 2011

1. Chegados a Outubro voltamos a ver, dentro e fora da Universidade do Algarve (UAlg), jovens de joelhos, a rastejar, a serem insultados e a insultar outros, a serem lambuzados com as mais nojentas mistelas e algumas vezes excrementos de animais.

2. Diz o código da praxe da UAlg que as praxes na nossa Universidade já há muitas décadas vêm a ser transmitidas de geração em geração. Ai se o ridículo paga-se imposto! A UAlg tem 30 anos, não tem muitas décadas! A praxe não existe por cá há 100 ou há 50 anos, não é uma tradição.

3. Em Portugal, a praxe tem tradição em Coimbra, mas os próprios estudantes, no contexto da luta contra a guerra colonial em África, aboliram-na na crise académica de 1969, porque os tempos não estavam para palhaçadas. Esta tradição foi reactivada na década de 1980 e depois importada por Universidades que iam abrindo pelo país. Hoje, também os tempos não estão palhaçadas e o risco que o país corre é enorme.

4. Após décadas de atrofio fascista a nível social, cultural e económico, após o turbilhão do 25 de Abril de 1974, na década de 1980, o conservadorismo regressou em força camuflado em ritos elitistas de um novo-riquismo. Numa sociedade pouco qualificada e numa grande parte ainda analfabeta, a nova tradição académica, os trajes, cresceram como símbolos de ostentação e marcavam a diferença dos futuros doutores em relação aos outros estudantes de graus de ensino inferiores e à sociedade pouco qualificada em geral.

5. Dizem que a praxe tem por objectivo integrar os recém-chegados. Como se estivessem a chegar a outro planeta! Na UAlg, não fui praxado, não praxei, não usei traje académico porque não quis, participei em jantares de curso, integrei-me, fiz amigos, sem que tivesse de humilhar ou subjugar alguém.

6. O código da praxe na UAlg diz que os caloiros devem ser tratado condignamente, não indo contra a condição do ser humano e que a praxe tem como objectivos receber condignamente os recém-chegados alunos, integrá-los e incutir-lhes as regras básicas do espírito académico, bom comportamento, e companheirismo, reflectindo-se mais tarde no crescimento pessoal. Realizar estes objectivos através da humilhação e subjugação é um contra senso! Humilhar ou subjugar alguém é desrespeitar a condição do ser humano! Como é que a humilhação ou a subjugação ajudam o desenvolvimento pessoal de alguém?

7. Entre graçolas presumivelmente inocentes, brincadeiras parvas e violência psicológica e física, a natureza da praxe é aberrante e baseia-se numa hierarquia e numa autoridade bafientas. O próprio código da praxe na UAlg fala em preservar uma cultura de servilismo, obediência e resignação!

8. Quantos dos actuais 10.000 estudantes da UAlg leram as 32 páginas das “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos”, de Antero de Quental, em 1871? Dizia Antero que, após séculos de uma ocupação romana e de uma Idade Média muito particulares, vibrantes, descentralizadas, até liberais comparando com o resto da Europa, após a aventura dos descobrimentos e a explosão renascentista, seguiu-se, no séc. xvi e em poucas décadas, uma decadência que não só durou até o tempo de Antero, como se prolongou até hoje.

9. O desenvolvimento de um absolutismo religioso, monárquico e social matou a cultura, a criatividade, a originalidade, a independência e a relativa liberdade que prosperaram durante séculos, matou o pensamento crítico e incutiu a passividade desde as classes mais baixas às classes mais altas e aos intelectuais. E o espírito aventureiro transformou-se em guerreiro, de uma nação conquistadora que para usufruir uma vida de ócio remete o seu saque para os países que trabalham. “Assim herdámos um invencível horror ao trabalho” e “nunca povo algum absorveu tantos tesouros, ficando ao mesmo tempo tão pobre!”, disse Antero.

10. Nem com o advento da monarquia liberal ou da República conseguimos libertar-nos desta cangalhada, que ainda foi reforçada durante 50 anos de fascismo em pleno séc. xx. Nas palavras de Antero “entre o senhor rei de então, e os senhores influentes de hoje, não há tão grande diferença: para o povo é sempre a mesma a servidão. Éramos mandados, somos agora governados: os dois termos quase que se equivalem”. Os portugueses, de criadores nos séculos xii a xv, passaram a tolerantes e fanáticos nos séculos xvi a xviii e chegaram a indiferentes nos séculos xix a xxi!

11. Um jovem supostamente moderno sujeitar-se à humilhação e subjugação é mais um elo da corrente que o garrota. Há sempre causas para os sorrisos submissos com que se convive na generalização dos estágios laborais mal ou nada pagos ao trabalho mal pago e precário. A resignação e a passividade são características do estado cultural do país, amorfo, derrotado.

12. Mais do que nunca é preciso atentar às palavras de Antero: “Façamos nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar. (…) Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? Para entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado. Respeitemos a memória dos nossos avós: memoremos piedosamente os actos deles: mas não os imitemos”.