sábado, 19 de fevereiro de 2011

Com os canteiros de Bordeira

Esta foi uma reportagem que saiu na revista Única, do Expresso, em 2008. O jornalista estava interessado em acordeonistas e levei-o à casa de João Barra Bexiga. O Sr. João não estava em casa e o jornalista não podia voltar. Disse-lhe logo que se não podia fazer uma reportagem sobre acordeonistas, poderia fazer uma interessante sobre canteiros. Disse-lhe que iamos até Bordeira e certamente que conseguiriamos encontar canteiros com belas histórias. Chegámos à Cocheira e começei logo à procura do carro do Zé das Neves. Vi logo o carro e a bicicleta do Grou. Bingo! Esta foi a reportagem do jornalista Nuno Ferreira.

Aquela pedra enorme vai servir para a freguesia de Santa Bárbara de Nexe prestar homenagem aos seus canteiros (escreveu o jornalista, mas por acaso não foi esta pedra mas outra que eu ajudei a ir buscar).

Em Março de 2008 entrei de mochila às costas na Junta de Freguesia de Santa Bárbara de Nexe a pedir informações sobre um conhecido acordeonista da região. O secretário da autarquia, depois de ter confessado que nunca tinha sido abordado por um jornalista de mochila às costas, levou-me a casa do músico veterano e lenda da região, mas ele não estava. Foi quando se virou para mim e disse: “Ouça, você não entrevista o acordeonista mas vai entrevistar os nossos canteiros”. Foi assim que tomei contacto com a história memorável dos canteiros da Bordeira. Encontrei José das Neves Moleiro, então com 68 anos, na Casa de Pasto Rústica, à beira da estrada, em companhia de outro grande canteiro, João Desidério.

José e João foram dois dos muitos canteiros da localidade da Bordeira que rumaram para França no tempo da ditadura e das vacas magras e acabaram a protagonizar o restauro de monumentos famosos no mundo inteiro.

Começaram ali, em crianças, mais precisamente nas pedreiras do lugar de Funchais, Bordeira, andaram por Cascais, alguns, e depois fizeram-se à vida e trabalharam no que sempre moldaram e os moldou a eles.

“A malta nova não tinha outra saída nesse tempo. Aqui, só havia uma oficina de carpintaria. Íamos para as pedreiras, ao todo éramos mais de 100 canteiros. Era vida de escravo, naqueles buracos marafados, o “bicho” queria se endireitar e não podia...”, contou-me José. Nos anos 60, quase tudo emigrou. “Quase tudo abalou, primeiro para Cascais e depois para França. A gente não queria nada com a guerra colonial. Eu atravessei o Guadiana a salto no dia 29 de Janeiro de 1962”.

José acabou por viver 38 anos em Paris. “A princípio, o mais difícil foi adaptar-me à língua. Depois, fui arranjando trabalho no “boca à boca”. Comecei a trabalhar no mais fácil mas nunca imaginei vir a restaurar os monumentos que restaurei”.
A destruição da Iª Guerra Mundial, a poluição, a erosão provocada pelo clima, tudo foi deixando marcas na pedra das obras de arte francesas. “A pedra deles é mais macia, absorve mais a água...”

Os dedos da mão de José das Neves Moleiros não chegavam para contar o número de monumentos que a sua arte de canteiro algarvio e “made in” Bordeira ajudou a restaurar: “Em Versailles, logo à entrada, junto às grades, está trabalho cá do velho. Nas cocheiras do palácio também. E se for à Catedral de Nôtre Dame, procure bem uma «estatuazinha» pequena na parte de trás do jardim. Fui eu que a restaurei”.

O olhar de José brilhava de orgulho. Por perto, mais reservado, o mestre João Desidério escutava a conversa como se não fosse nada com ele. Foi José a ajudá-lo a soltar a modéstia. “Tu João, tu também restauraste muita coisa”. Só em Paris, João trabalhou no restauro da Assembleia Nacional, do Louvre, dos Invalides e do Sacré Coeur. Da grande basílica de Montmartre lembram-se os dois bem, não haveriam de se lembrar. “A pedra do Sacré Coeur era pedra marafada, rija de um raio, mais duro que um ferro...”

Deixei a Bordeira e os canteiros entregues à conversa sobre os futuros museus da cantaria e monumento aos canteiros e fiz-me à imprevisibilidade da estrada. Parti bem mais rico do que quando ali parei, à porta da Junta de Freguesia e na mente ecoavam ainda as palavras de José das Neves Moleiro: “Eles em papel eram mais fortes mas depois na prática a gente éramos os reis”.


O mestre José das Neves inspecciona a fractura na rocha.


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